HISTÓRIAS do JUDICIÁRIO BRASILEIRO:
* Em Italic comentários jurídicos atuais
UM DOS MAIORES ERROS DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO
Em 1937 teve início um dos casos mais célebres de injustiça e erro
judiciário de nosso país, o caso dos irmãos Naves. Dois irmãos simples da
cidade de Araguari em Minas Gerais são os Do mais grave ERRO DE JUSTIÇA DO PAÍS
. Sebastião José Naves contava com trinta e dois anos, enquanto seu irmão,
Joaquim Rosa Naves, vinte e cinco. Ambos trabalhavam na lavoura e
comercialização de cereais. Joaquim também era sócio de seu primo, Benedito
Pereira Caetano, outra figura notável nesse episódio, em um caminhão Ford V-8,
que transportava as mercadorias Benedito compra muitas sacas de
arroz, gasta 136 CONTOS DE REIS esperando revendê-las e lucrar
consideravelmente. Contudo, o preço do arroz cai, e recebe apenas um cheque no
valor $ 90 contos de REIS por toda
mercadoria. Não haveria lucro, aliás, a soma não cobriria todas as suas
dívidas. Logo após receber o cheque Benedito resolve sacá-lo e, dois dias
depois, NINGUÉM MAIS NA CIDADE DE
ARAGUARI SABE NOTÍCIAS DE BENEDITO.
Os irmãos procuram o primo que estava
hospedado na casa de Joaquim, visitam sua amante, Floriza, o fornecedor e o
comprador das sacas de arroz. Com o passar do tempo, a preocupação aumenta e
eles procuram a polícia, relatando, ao delegado Ismael do Nascimento, os
últimos fatos. A polícia realiza buscas, porém
Benedito não estava em parte alguma.
O inquérito é instaurado, os irmãos
Naves, bem como Floriza, José Lemos (comprador das sacas de café) e outros dois
amigos do desaparecido são testemunhas. Eles recontam os últimos momentos com
Benedito, na festa de inauguração de uma ponte, entre Araguari e Goiás. Joaquim
explica que depois da comemoração, jantaram em casa e o primo resolveu sair
para passear no parque de diversões, levando toda a importância de que era
portador. Floriza conta que, na verdade, dançou com o desaparecido no cabaré
naquela madrugada, mas não haviam passado a noite juntos.
Nada. Tudo sem rumo. O povo inquieto.
O delegado malvisto. Mole. Mole. Mas não era. Honesto, sensato. Não via, não
atirava no escuro. Podia acertar noutro. Não queria ser perigoso, nem injusto.
Na busca por uma solução do caso, um
delegado militar é convocado para conduzir as investigações, Francisco Vieira
dos Santos, figura central para a transformação do episódio. No mesmo dia em
que assume o posto, intima novas testemunhas. Dentre elas, José Prontidão, que
trabalha no mesmo ramo dos irmãos Naves e afirma ter visto e trabalhado com
Benedito em Uberlândia, pouco tempo após seu desaparecimento.
Dona Ana Rosa Naves, mãe dos irmãos e
de mais outros 12 filhos, viúva, contava com sessenta e seis anos, foi ouvida
pelo delegado e confirmou a versão de Prontidão. Em seguida, o delegado
tomou os depoimentos da esposa de Sebastião, Salvina e a de Joaquim, Antônia.
Ambas sabiam que na noite anterior ao sumiço do primo, os irmãos estavam nas
respectivas casas. Um amigo de Benedito, Orcalino da Costa, em seu testemunho
sugeriu que os responsáveis pelo desaparecimento de Benedito eram os irmãos
Naves. O delegado preferiu seguir esta última "pista".
Os Naves e Prontidão são presos,
sofrem muitas agressões, passam fome e sede. O último não agüenta a tortura por
muito tempo, modifica seu testemunho, diz que os irmãos mandaram-no dizer
aquelas coisas em troca de uma gratificação posterior. Deste modo, o delegado
consegue a acusação que tanto desejava para revelar aquele "crime",
mas ainda espera a confissão.
Os irmãos continuam presos no porão da delegacia, nus, ainda sem receber
alimentos ou água, apanhando muito, porém nada diziam. Assim sendo, prendem Dona Ana, retiram-lhe
as roupas e mandam os filhos baterem na mãe idosa, e eles, obviamente,
recusam-se. Todos são torturados, Dona Ana chega a ser estuprada, porém é solta
após alguns dias e procura um advogado. Já não era a primeira vez em que
ela procurava o Dr. João Alamy Filho, que, por fim,
resolve defender os irmãos.
O primeiro habeas corpus data de
janeiro de 1938 e relata a prisão ilegal dos irmãos com a finalidade de que
"confessem a sua suposta autoria ou responsabilidade pelo desaparecimento
de Benedito Pereira da Silva".
Novas testemunhas são ouvidas, como
Guilherme Malta Sobrinho, que afirma ter visto o caminhão de Joaquim na
madrugada do dia 23 de novembro além de acreditar que os irmãos são os
responsáveis pelo desaparecimento de Benedito. Enquanto isso, os irmãos
continuam presos, o defensor dos Naves conta:
Dia a dia, levava os presos pro mato. Longe. Onde
ninguém visse. Nos ermos cerradões das chapadas de criar emas. Batia. Despia.
Amarrava às árvores. Cabeça pra baixo, pés pra cima. Braços abertos. Pernas
abertas. Untados de mel. De melaço. Insetos. Formigas. Marimbondos. Mosquitos. Abelhas.
O sol tinia de quente. Árvore rala, sem sombra. Esperava. Esperavam. De noite
cadeia. Amarrados. Amordaçados. Água? Só nos corpos nus. Frio. Dolorido. Pra
danar. Pra doer. Pra dar mais sede. Pra desesperar.
Entretanto, a única técnica efetiva
de tortura é a separação dos irmãos. Forjam o assassinato de Sebastião, e
Joaquim, apavorado, não mais resiste e decide confessar o "crime".
Declara, no dia 12 de janeiro de 1938, que ele e seu irmão convidaram Benedito para
um passeio a Uberlândia, e no meio do caminho, decidiram tomar água na margem
do rio. Neste momento, Sebastião agarrou Benedito pelas costas e ele, Joaquim,
introduziu uma corda no pescoço do primo, apertando-o.
Deste modo, o primo
desfaleceu e os irmãos acharam um pano em sua cintura, contendo a importância
de noventa contos de réis, os quais foram postos em uma lata de soda, preparada
anteriormente. Em seguida, atiraram o cadáver do primo na cachoeira do Rio das
Velhas. No caminho de volta para Araguari, escolheram uma moita de
capim-gordura, entre duas árvores, aonde cavaram um buraco e esconderam o
dinheiro roubado. A última parte do plano, era procurar Benedito assim que
retornassem à cidade, para que não se tornassem suspeitos do delito.
O delegado levou Joaquim para que
pudesse reconstituir o crime. Também houve busca e apreensão, que resultou
negativa, já que não foram encontrados o pano que envolvia o dinheiro e muito
menos a lata com os noventa contos. Não havia o que procurar, era impossível encontrar
objetos que nunca foram usados, pois tal crime não havia ocorrido. Também não
se achava o cadáver de Benedito. Destarte, ignora-se o exame do corpo de delito
direto ou indireto, e baseia-se somente em uma "confissão".
Joaquim estava tão desesperado para
conferir alguma veracidade a sua confissão falsa que chegou a envolver seu
cunhado, Inhozinho, que negou ter recebido os noventa contos de réis. Ele
explicou que fazia negócios com o cunhado, mas só havia recebido três contos
durante aquele período.
As autoridades policiais também
tentaram dar outro defensor aos irmãos, que inseguros, recusam a oferta e
mantém como advogado João Alamy Filho. Também prendem, novamente, Dona Ana, que
se recusou a assinar o depoimento e contou:
Tudo quanto se tem dito contra si é pura mentira,
pois está absolutamente inocente (...)que seus filhos e sua nora estão doidos
(...) se não estão doidos confessaram-se autores da morte de Benedito de medo
de sofrerem espancamentos por parte da polícia.
O processo é bastante tumultuado,
depois da denúncia do Ministério Público, ingressa o pai de Benedito, como
assistente de acusação. É importante ressaltar que Dona Ana também é acusada,
como cúmplice do latrocínio. Tanto os irmãos Naves, quanto sua mãe, ficam
presos durante a instrução do processo. As esposas são presas e até mesmo os
filhos de Sebastião são presos, privados de alimentação e agasalho, chegando a
falecer o menor deles. Outro habeas corpus é impetrado, mas apesar de ser
concedido, em 5 de março de 1938, a ordem não foi cumprida.
A decisão de pronúncia, de 21 de março de 1938, aponta:
O crime de que se ocupa esse processo é da espécie daqueles que exigem do
julgador inteligência aguda, atenção permanente, cuidado extraordinário no
exame das provas, pois, no Juízo Penal, onde estão em perigo à honra e
liberdade alheias, deve o julgador preocupar-se com a possibilidade de um
tremendo erro judiciário.
(...)
No caso em apreço, em que o cadáver da vítima não
apareceu, como não apareceu também o dinheiro furtado, a prova gira em quase
que exclusivamente em torno das confissões prestadas pelos indiciados à
autoridade policial, sendo notar que o patrono dos acusados, nas razões de fls.
143, informa ao juiz que tais confissões foram extorquidas e são produto da
truculência, dos maus tratos e da desumanidade de que fez uso e abuso o
delegado nas investigações primárias do delito.
Apesar da exposição acima, conclui o
juiz que é procedente a denúncia em relação aos irmãos Naves, entendendo pela
improcedência somente em relação à Dona Ana, pois sua cumplicidade deu-se após
o fato. Esquecem de que os noventa contos também não pertenciam integralmente à
vítima, aliás, apenas um décimo daquela quantia lhe cabia.
Os réus recorreram da decisão de
pronúncia, mas o Tribunal de Apelação de Minas Gerais negou provimento ao
recurso, por conseguinte, foram levados ao Tribunal do Júri. Em junho de 1938,
o juiz, Merolino Raimundo de Lima Corrêa pergunta a Sebastião o que ele pode
alegar em sua defesa e ele lhe responde:
O que assinou e
consta do processo o fez por medo e devido aos maus tratos recebidos da
polícia; que o fizeram tomar purgante de 15 em 15 minutos, sentado sobre
tachinhas; que foi amarrado e surrado até falar mentiras embora resistindo
durante 38 dias; que apanhou tanto que ficou com o corpo coberto de sangue,
sofrendo injustiças e suplícios; que esses suplícios alcançaram sua própria
mãe, a qual nua, foi seviciada na polícia, que jura sua inocência em nome de
Deus e de seus filhos
Já quando o juiz indaga o outro réu,
ele responde:
...Que não deve o crime que lhe é imputado; que se
falou à polícia o que consta dos autos, foi a poder de pancadas, que se
confirmou o que havia dito à policia no interrogatório feito pelo Juiz do
sumário foi devido a insinuação da própria polícia, que lhe fez ameaças
extremas caso não confirmasse; que tem sido bastante judiado na polícia e pede
intervenção do MM Juiz para que cessem os maus tratos infligidos
O júri negou a autoria dos fatos aos
acusados, absolvendo-os por seis votos a um. Contudo, os réus deveriam
permanecer presos, para o processamento da apelação. A promotoria interpõe
recurso devido a decisão do júri não ser unânime, desta forma, os réus vão
novamente a julgamento pelo tribunal popular.
Em março de 1939 ocorre o segundo
júri, Joaquim foi absolvido por cinco votos a dois e Sebastião, seis a um.
Entretanto, cabe novo recurso do Ministério Público, tendo em vista à falta de
unanimidade da decisão. Destarte, em julho de 1939, a Câmara Criminal do
Tribunal de Apelação de Minas Gerais dá provimento ao recurso, cassando a
decisão do júri. Os irmãos são condenados a cumprir pena de 25 anos e 6 meses
de prisão, além de pagar multa de 16 ¼ sobre o valor do objeto roubado.
A defesa pede revisão criminal, em
1940, que é negada, apesar de a pena ser reduzida para 16 anos e 6 meses. Já em
1942, os réus pedem indulto ao Presidente Getúlio Vargas, que não é atendido.
Somente em 1946 conseguem o deferimento do pedido de livramento condicional e
voltam para Araguari. Contudo, Joaquim sofre de uma doença grave e morre em
1948 em um asilo da cidade. Cabe a Sebastião provar sua inocência, bem como a
do irmão falecido.
E somente em 24 de julho de 1952 o
caso teve uma revira-volta, já que Benedito Pereira Caetano reaparece vivo na
fazenda de seus pais, em Nova Ponte. Ele é visto por Prontidão, que avisa sobre
a "ressurreição de Benedito" a Sebastião, o qual acompanhado de
alguns policiais e de um repórter do Diário de Minas, dirigem-se à fazenda para
reencontrar o primo, tido como morto por todos aqueles anos.
No momento do reencontro Benedito
teme, mas Sebastião o abraça e diz: "– Graças a Deus
te encontrei para provar a minha inocência. Ninguém te quer matar, vem para a
cidade, pro povo ver que você está vivo e que eu sou inocente"
Assim, Benedito volta a Araguari,
onde é quase linchado por conta da ira popular, é preso preventivamente,
acusado de apropriação indébita. Fica detido por nove dias, mas já havia
decorrido o prazo prescricional da pena do suposto ilícito, e sua prisão é
relaxada.
Após o reaparecimento de Benedito, Sebastião e a viúva de Joaquim
pleiteiam a revisão criminal cumulada com indenização, a qual é deferida em
1953. Contudo, o valor só é pago em 1962.
É importante ressaltar que na época desse triste caso, o Brasil
enfrentava um período ditatorial e os cidadãos tinham seus direitos e garantias
limitados. A subversão à ordem democrática e jurídica deu ensejo à realização
do que pode ser considerado o maior erro judiciário brasileiro.
Ao longo do caso,
nota-se inúmeros desrespeitos tanto ao direito material de suas vítimas quanto
à ordem processual vigente na época. Outro ponto relevante é a utilização da
confissão como a "rainha das provas".
Fonte: Camila
Garcia da Silva
A história dos Naves virou Livro e Filme.
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